A Cidade Depois da Chuva

As cidades tornam-se invisíveis depois da chuva. Adormecem, então, por uma curta fracção de tempo, numa terna ausência.

Caiem litros de água dos céus, num manifesto corpulento dos deuses. As gentes abrigam-se atrás dos guarda-chuvas, nas entradas das lojas, por baixo dos balcões das varandas dos prédios, ou, à falta de tudo o mais, na pressa do seu passo. Os carros amontoam-se, confusos e extraordinariamente barulhentos; e incomodam, desatentos, todo o transeunte que se aproxima da beira da estrada com um jacto de água suja.

O tumulto é um peso que comprime o à-vontade e propulsiona a urgência. Há a pressa de chegar ao destino; num movimento descuidado, espelho da agitação dos céus. As estradas e os passeios vão sujos; incomodam o andar. Tudo incomoda!

Até o tempo se perde – o tempo de Chronos. Anda desorientado como nós, quando as tensões abdominais apertam durante um apaixonante filme e nos tiram a atenção, sentenciando o nosso prazer. Impacientes, vingamo-nos daquilo que consideramos uma injustiça: culpamos o tempo pelos nossos atrasos – tempo este o de Zeus. Em vez disso, poderíamos soltar um humilde “Desculpe, atrasei-me por causa desta casmurra ideia que temos de não respeitar quem cumpre o inócuo prazer de se lavar; de quem não toma providência e insiste tomar por seu o direito do outro, e ainda o sentencia com a perpetua sujidade crude da urbe.”

A chuva cessa.

É neste momento, num único e não mensurável instante, que tudo fica suspenso. O silêncio corre pelas vias adormecendo a azáfama, e as gotículas de água deixam-se ouvir cair em cadências mais ou menos síncronas. Ouve-se o silêncio dialogar com o vento, ao que se seguem as vozes dos pássaros. As cidades tornam-se invisíveis depois da chuva. Adormecem, então, por uma curta fracção de tempo, numa terna ausência.

A cidade renasce num ritual de singela pureza; limpo e delicado. As primeiras gentes saem às ruas. Curiosas, cuidadosas, dominadas por uma incógnita prorrogativa. Como são estranhas estas gentes que temem a inocuidade. E por serem estranhas, reagem. E quando finalmente reagem, fazem-no ocupando este espaço que por instantes lhes permaneceu estranho. E ocupam-no; com alegria, graça e regozijo! Acordar-se-ão, porventura, que tal roda-viva não é mais que o inspirar do breve silêncio da cidade depois da chuva?

Berlim, 7 4 2019